Diálogo de visões
Em artigo publicado em A GAZETA, de 21/03/2002, Silo Meireles enfatiza a importância dada, em outros países, à concepção fônica do ensino da leitura e questiona o modelo alfabetizador brasileiro – a intitulada alfabetização significativa. Para uma boa compreensão do segundo modelo, sugere-se a leitura do excelente artigo "Pedagogia do texto: alfabetização e Ciências Sociais", publicado pela educadora/especialista local Elida Maria Fiorot Costalonga, na Amae/Educando, edição de março/2002.
Compreendendo o modelo alfabetizador "oficializado" no país como a orientação divulgada pelo Ministério da Educação e do Desporto, via Parâmetros Curriculares Nacionais, claro fica que o ensino/aprendizagem das convenções da leitura e escrita — grafemas/fonemas — é indispensável, necessário e jamais posto em questão. Entretanto, junto a essa relação memorística letra-som, a primeira e nunca a única para o transformar do indivíduo em alfabetizado, muitas outras se fazem indispensáveis, em se tratando de sujeito leiturizado, capaz de ser e estar no mundo, vivendo-o como integrante leitor/transformador, e não apenas como alfabetizado interpretador do óbvio.
Desde 1968, Foucambert, na França, desenvolve um trabalho para o ensino de leitura, da fase inicial ao aperfeiçoamento (até o 1º ano do collège), que vai muito além da concepção fônica, contando para tanto com a parceria de Gaston Milaret e Jean Vial, o primeiro ocupando-se da metodologia, experimental/processo científico e, o segundo, das histórias das idéias e técnicas educativas. Segundo Mabel Condenarin, coordenadora da equipe de linguagem do "Programa 900 escolas" e membro da equipe de elaboração dos programas de linguagem e comunicação do Ministério da Educação do Chile, "graças à linguagem a criança conhece o mundo e o constrói", diante do que "aprender e adquirir conhecimento são realidades que só acontecem no domínio progressista da linguagem oral e escrita: por isso, na pedagogia moderna, cada vez mais se valoriza sua importância". Citamos pareceres de dois cientistas em ação atuando no modelo alfabetizador "oficializado" também na França e no Chile, os quais não rejeitam o ensino-aprendizagem de sons e letras, mas consideram a leitura de mundo, através do ouvir/falar e ver/interpretar individuais, como habilidades e competências indispensáveis à apropriação da leitura e escrita funcional, intencional e transformadora.
Identificar um único aspecto da leto-escritura como responsável pelo êxito ou fracasso na formação de um leitor-escritor é transformar, em algo mecânico e individual, o que pode constituir um processo significativo de transformação social. Ler e "registrar" previsões e necessidades é inerente ao ser humano em todas as idades. Bem o dizia Piaget: "A criança não é um homem em miniatura". Também a criança precisa prever e desenvolver ações para atendimento às suas necessidades, mesmo antes de se apropriar das relações fonológicas e fonêmicas, específicas e gerais. É verdade que os que freqüentam a instituição escolar, desde os dois anos, entram em contato com a fonologia/fonêmica e com diversas outras situações propiciadoras de leitura crítica, que as primeiramente citadas não oferecem.
Os fracassos nacionais e internacionais do modelo alfabetizador deveriam considerar, em primeira mão, a falta de competência interpretativa dos "leitores-escritores" como fruto de um processo sincrônico e anacrônico, em que um dos principais fatores de influência seria a falta de investimento na formação do profissional de ação, nas esferas pública e privada. Só a competência leitora dos formadores, inclusive para fins de seleção e análise crítica da bibliografia existente em torno do complexo processo leiturizador, pode ser capaz de propiciar mudanças no quadro de analfabetismo crônico ou funcional, que nos incomoda a tantos.
MARIA HELENA SALVIATO BIASUTTI PIGNATON é coordenadora do PEA/Unesco no Espírito Santo