O projeto interdisciplinar “Olhares sobre o Espírito Santo: percursos capixabas” desenvolvido pelas disciplinas Português/Literatura, Geografia, História e Artes com os alunos das 1ªs séries do Ensino Médio, trouxe para sala de aula a proposta de estudar a fundo sobre alguns pontos pitorescos da capital capixaba para percorrê-los com o olhar do viajante (e não do turista) e interferir na realidade, com a consciência cidadã. O projeto também teve o objetivo de estimular o senso de pesquisa, o olhar observador e a produção cultural.
Durante o andamento do projeto os alunos inicialmente tiveram contato com materiais históricos e literários em torno do objeto de estudo, o que auxiliou na construção de conhecimento prévio para enxergar o entorno com outros olhos. Depois, em Excursão Pedagógica, conheceram os principais pontos históricos do centro de Vitória. Por fim, na etapa pós-percurso, foram desenvolvidas produções culturais individualizadas e de grupo que demonstraram as percepções dos alunos durante a excursão ao centro de Vitória
Uma das produções que chamou atenção pela riqueza de detalhes e diferentes percepções foi o texto “Ilhazinha”, da aluna Laura Chieppe, da 1ª série I – 1, de 2009. Confira a redação:
Ilhazinha
Me disseram que as crianças são as únicas que realmente conseguem ver, pois nunca viram, só vêem verdade. Há muito perdi meu olhar inocente, minha curiosidade, meu desejo isento de julgamentos. Então assumi esta missão: despertar uma vez mais.
Como boa nativa que nunca fui, decidi aplicar meu olhar sobre minha cidade, a qual não emanava frescor buscando novas atenções; sentada e parada, minha cidade era o mendigo da rua, sempre em seu canto, tão incorporado à paisagem que ninguém se incomodou em repará-lo, ninguém percebeu que escrevia furiosamente e que recitava belas poesias.
Um de meus cantores preferidos disse “quero viver, quero ouvir, quero ver”, e balbuciando a melodia, talvez para inspiração, que cheguei ao centro – é preciso procurar primeiro nas origens, sussurrou o senso-comum. Ter me deslocado até um lugar tão esquecido e mal-tratado me fez acreditar que chegar seria suficiente para sentir qualquer coisa. Não senti nada, por que olhava e não via?! Oras, frustração. Isso está começando a ficar difícil.
Comecei pelo comércio bruto, que empesteou os velhos casarões da Cidade Alta, e as ruas irregulares que nunca davam onde queríamos. Desci do ônibus, saquei minha câmera. Um de meus passatempos é fingir que sou fotógrafa famosa, que vê essência em titica de pombo. Olhei o porto, aquele murinho amarelo da orla. Os navios são impressionantes, como cabem tantos numa ilhazinha como essa? E ainda por cima têm guarda, um morro paciente que vê o desenvolvimento chegar a séculos sem alterar seu posto.
De fora para dentro, pensei, vou explorar como fizeram com o próprio Brasil. Passei pela escadaria, em frente ao Palácio, com suas estátuas descuidadas, sua tentativa de amarelo. Acima, cliquei as bandeiras se agitando preguiçosamente sobre o olhar atento do próprio Espírito Santo. Imaginei que figurões da colônia já pararam para admirar a vista por aquela varanda, fumando charutos franceses, e pensando no futuro que esse pedaço de terra teria. Coitados, espero que não tenham sentido, nos ossos em decomposição, as feiúras que chegaram, mas se vangloriem apenas do belo desse progresso.
Adentrando a multidão de monumentos, enquadrei cores onde só se via preto e branco. E, repito, tudo parecia abandonado; porém foi justamente essa característica que me fez acordar para a história que envolve nós capixabas. Uma cultura que nasceu, cresceu e já é vista como inválida. Subestimada pelos vizinhos do sudeste, e desconhecida para o próprio povo. Os mistérios sob a fachada largada, aquele jeitinho de não estar nem aí, a auto-estima muito bem preservada. Mas primeiro a arquitetura...
Acho que uma das mais suntuosas construções da cidade é a Catedral, fiel ao estilo gótico em suas torres altas e os vitrais iluminados sempre nos lembrando que Deus está aqui. É sereno lá dentro,e, sem dúvidas, não é grande coisa num mundo de maravilhas, mas sobreviveu à cidade, é guerreira. Perdão por aquele que não serão mencionados, vou comentar o que me é de direito, o que foi revelado em minhas fotos e suspenso em mural para ser lembrado, o marco do meu eu-capixaba. Sorrio com a Igreja de São Gonçalo, barroca creio, simples por fora, com uma personalidade peculiar oculta. Como uma menina tímida que sabe brincar só com seus amigos, é adorável. Me casaria lá, mas não fiz comunhão, então deixa para outra vida.
Pra fechar, almoço à beira-mar. É inacreditável como se tornam um: panela de barro e moqueca. Sinto dizer, jamais parei para escutar congo algum, e muito menos aprecio polenta. A minha pessoa nasceu no mar, se identifica com o sabor da moqueca, conhece é uma ilhazinha, protegendo num mar de perdão os meus amores, isolando-os da dor.
Não consigo segurar, preciso dizer que a história teve seu feliz, a consciência em sua pura visão de quanto somos excepcionais, de que cidade viva e irresistível temos. Mas só com disposição de olhar para dentro, de misturar história e desenvolvimento. Falta coragem no capixaba, coragem de bater no peito e lembrar ao país que, ei, somos ricos em gente, em vida, em paisagens, em costumes!, só não gostamos de nos exibir. Não é falta de perspectiva, na verdade essa é a nossa identidade.
Voltei à hora de olhar através da minha janela, refletir. Ver o Convento, a Terceira Ponte, ter meus próprios crepúsculos de paz enquadrados. Desenhar rostos de todas as cores, e vozes que cantam as diferenças, Adormecer com o barulho das ondas e ter sonhos de melhorar. Lembrar que ser capixaba é um segredo, é o tempero de um povo banhado por mar, de uma mistura de aqui-e-lá, detalhes tímidos, personalidade sensual, e muita vontade de não se adequar.
Laura Chieppe
Vista Fluo, Liza Tancredi (o quadro baseado na vista da minha janela).