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Projeto Profissões - Sintonia de Gerações
18/08/2011 · por Paulo de Tarso Rezende Ayub · Tags: Projeto Profissões


Se as expectativas para o momento eram grandes devido à biografia e repertório dos convidados, a vivência do último dia da terceira etapa do Projeto Profissões (no último 17 de agosto) superou em muito as projeções de alunos e educadores, pois lhes propiciou um contato face a face com dois sujeitos valorosos, o que sem exageros deixou praticamente todos em estado de graça.


Pai e filho – Gutman e Dan
   

Lado a lado, o jornalista Guttman Uchôa de Mendonça e o médico e artista plástico Dan Mendonça, pai e filho, não discorreram apenas suas bem-sucedidas trajetórias profissionais. Deram uma aula de vida, cidadania, entusiasmo, alegria, superação. Ensinaram-nos a enxergar o profissionalismo como uma extensão de nossas almas, um motivo para celebração da vida, uma forma de aliar capacidade produtiva e a idiossincrasia tão proclamada por Drummond como a maior marca da humanidade.


250 alunos participaram da “aula”.


Também fizeram-nos usufruir a graça da diferença:  um pai apaixonado pela leitura e escrita inebriando--se com um filho devotado à Medicina e às Artes;  um filho liberto das rotinas, dividido entre o pragmatismo da Ciência (“pés no chão”) e a criatividade da Arte (“coração nas nuvens”), a render-se ao espírito de  pertencimento do pai nas instituições que frequenta e à incorporação da rotina saudável e compromissada como uma filosofia de vida.

O trabalho como objeto de desejo, em que não há lugar para acomodação ou “pendurar das chuteiras”, transpareceu tanto no relato de Uchôa de Mendonça, que já transformou um quarto de hospital em sala de edição de colunas jornalísticas (enquanto convalescia de um infarto), quanto na experiência de Dan Mendonça, que agregou à sua casa um anexo criativo, misto de galeria, laboratório de inventos e espaço para experimentação.


Gutman Uchôa de Mendonça

Com seus discursos contundentes, memórias prodigiosas, habilidade para contar histórias e estabelecer conexões, pai e filho silenciaram-nos a todos numa escuta atenta, engajada, participativa e deliciosa. O jornalista trouxe laudas cuidadosamente elaboradas e leu-as pausada e emocionadamente, mergulhando num tempo caracterizado por costumes muito diferentes dos atuais, mas encantadores pelas referências de ética, superação, cidadania. O reconhecimento à escola e à família como núcleos de formação e o cuidado em prestar tributo a figuras modelares de sua formação para a vida criaram um ambiente de nostalgia inevitável. Só que uma nostalgia muito curtida, em que o doloroso viu-se substituido pelo vibrante.
   
Gentilmente, o jornalista permitiu que socializássemos sua bela explanação com nossa comunidade (leia a íntegra no pé da página). Vale a pena reservar um tempo de leitura e reflexão para ela, num mergulho interior a um passado que se projeta para o presente e nos deixa incomodados com a relativização de valores que deveriam ser permanentes e universais, senão inegociáveis.
   
O médico-artista, como se intitula Dan Mendonça, não trouxe um escrito organizado, mas apenas um roteiro (uma espécie de linha do tempo) que serviu como estímulo para seu discurso fluir em torrentes. A revelação de sua paixão pela medicina desde a infância, como uma possibilidade de minimizar o sofrimento dos avós-doentes, e sua propensão para as artes plásticas, o invento e a criação, deixou-nos em suspenso,  na expectativa do que viria. E o que brotou daí foi a genialidade de um homem muito além do senso comum, mas que, em vez de se portar como celebridade, cultiva a humildade, a docilidade e a simplicidade (não simploriedade) de vida. Um contador de casos e um tecelão de conexões entre diferentes campos da ciência.  Um inventor em constante mutação e uma mente criativa que consegue sair de cena para dar lugar ao metodismo da microcirurgia, uma arte redentora da vida.


Dan Mendonça
   

Não seria justo deixar de trazer uma síntese sobre tiradas de sabedoria e reflexões filosóficas que pontuaram o momento, trazendo muitos aspectos para reavaliação e continuidade de pensamento. Ao exercício da reflexão, pois:
• a consideração em relação a todos os ofícios como nobres e sujeitos à reinvenção: do elogio ao pedreiro, que edifica a Arquitetura e muitas vezes não pode frequentar os palácios que ergueu, à dedicação dos mestres que, com seus exemplos pessoais e métodos, consolidam novos pesquisadores, ativistas do conhecimento, profissionais que não veem sentido na teoria que não transforma e ressignifica o mundo.

• a valorização da cultura, da leiturização e do potencial produtivo como marcas pessoais, como riquezas inestimáveis que ninguém nos rouba e que nos possibilita abrir frentes e descobrir inúmeras possibilidades.

• o direito de utilizar as tecnologias racionalmente, sem nos escravizarmos a elas, pois ao mesmo tempo que nos propiciam o avanço, a experimentação e a interação, nos retiram da interiorização, da privacidade, do direito de nos manter incomunicáveis, desenvolvendo o autoconhecimento e o apropriar-nos de nós mesmos. As redes de relacionamento, lugares de superficialidades e da exposição excessiva, chegaram a ser qualificadas de antissociais.

• a visão em relação ao banheiro da casa, enxergado como um espaço de leitura e reflexão, como uma biblioteca particular, em que livros e revistas são dispostos irreverentemente. Uchôa de Mendonça, sem preâmbulos, parafraseou Rubem Alves, que nos traz um aconselhamento peculiar, em seu artigo ‘A função cultural das privadas’: “Estou sugerindo aos pais e mães, preocupados com a educação dos filhos e com sua própria educação, que transformem as privadas em bibliotecas. Uma minibiblioteca suficiente para operar grandes transformações nos que leem enquanto assentados no trono”.

• a coragem de relativizar conceitos e de tratar como ilusão de ótica algumas verdades que não resistem ao olhar crítico, como denunciar que nunca alcançaremos a democracia enquanto tantos permanecem marginalizados e uns poucos apropriam-se da coisa pública como uma propriedade privada, lugar de desmandos, negociatas e conchavos.


Apropriando-nos das palavras com que Uchôa de Mendonça humildemente fechou sua explanação, dizemos aos nossos ilustres convidados: muito obrigados pela oportunidade; por nos tratarem como seres pensantes e defenderem a crítica e a polêmica como aliados ao crescimento intelectual e liberdade de expressão. Não dá para sair ileso ou alienado depois de lidar com tanta profundidade.



Fala de Gutman Uchôa de Mendonça


Sou natural de São Mateus, Norte do Espírito Santo, onde nasci em 29 de abril de 1931 e tenho como profissão “jornalismo”, militando como empregado de A GAZETA, na função de redator, desde 2 de setembro de 1952. Era para ser contabilista, mas mudei de rumo, premido pelas dificuldades que encontrei na vida, como a falta de emprego.

 Sou filho de Octávio José de Mendonça e Anna dos Santos Mendonça, com mais seis irmãos, sendo o quinto filho.

Estou aqui, atendendo ao convite do professor Victor Biasutti, coordenador deste educandário, que me fez convite através de meu filho, médico, Dan Mendonça, para falar-lhes sobre como escolhi a profissão que exerço, com carteira assinada, em A GAZETA, desde 2 de setembro de 1952, mas na verdade estreei ali em março de 1952.

Sou casado desde setembro de 1955, com a professora Osmy Ferreira de Mendonça, natural de Baixo Guandu, Espírito Santo, com quem tenho dois filhos: Dan Mendonça, médico, artista plástico – pintor, escultor, fabricante de guitarra e outros instrumentos, inventor e fabricante de aparelhos operatórios para seu ramo médico – otorrinolaringologia, até exportando os produtos que fabrica. Nas horas vagas, invade minha área de construtor. Para arquiteto, basta o diploma. É casado com a médica gastro, Ana Tereza Parpaiola de Mendonça, com quem tem duas filhas – Dani e Leda.

O outro filho, Franz Ferreira de Mendonça é advogado e exerce as funções de Procurador Geral da Junta Comercial do Estado e é assessor da área jurídica da Federação do Comércio do Estado do Espírito Santo. Nenhum imaginou seguir o jornalismo.

Como já disse, sou jornalista profissional, registrado no Ministério do Trabalho e Emprego sob o nº. 52, em 2 de setembro de 1954, atuando no jornal A GAZETA até hoje com carteira assinada, perfazendo um total de 59 anos de trabalho, ininterruptos, e patrão, também.
Quero esclarecer como adotei o jornalismo como profissão.

Eu nasci jornalista. Meu pai, Octávio José de Mendonça chegou a São Mateus em 1924. Estudou para padre no Seminário de Olinda, Pernambuco. Vendo que não tinha vocação sacerdotal, desistiu da batina e foi trabalhar no Rio de Janeiro, no Correio da Manhã, da família de Edmundo Bitencourt, que tinha suas origens em Alagoas, onde meu pai nasceu, na cidade de Penedo, às margens do Rio São Francisco. Foi no seminário que ele aprendeu o ofício de tipógrafo, passo importante para as artes gráficas, a base para elaboração dos trabalhos de tipografia.

Meu bisavô, Sidrônio Uchôa de Mendonça e minha avó Virgínia entenderam que alguém da família tinha que ser padre. Foi assim que meu pai foi empurrado, a contragosto, para o Seminário, onde, perto de se ordenar, largou a batina e foi para o Rio de Janeiro.

Lá conheceu um companheiro de redação, Fernando Duarte, que tinha um irmão, Cassiano Duarte, trabalhando nos escritórios da Estrada de Ferro São Mateus – Nova Venécia, que precisava de um profissional que entendesse de tipografia, para trabalhar na oficina gráfica que produzia material para os escritórios da Estrada de Ferro São Mateus – Nova Venécia.  

O namoro com minha mãe prosperou e, antes de se casar, meu tio-avô, Constantino Cunha, que criou minha mãe, adquiriu uma oficina de tipográfica completa, na T. Janer, no Rio de Janeiro, importada da Alemanha, ainda usando os velhos tipos e duas rotoplanas manuais, sendo que uma podia ser movida a motor ou a pedal, e outra, pequena, manualmente.

Com a aquisição das oficinas gráficas meu pai criou o primeiro jornal de São Mateus – Kodak, mas logo nos primeiros números a empresa alemã, dona da marca, protestou pelo uso indevido, e meu pai mudou o título do jornal para O Norte, que funcionou até 1942, quando meu pai foi preso, por ter escrito um artigo que não agradou ao Chefe da Nação, o Ditador Getúlio Dorneles Vargas, que despachou para o Espírito Santo um advogado, secretário do DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda, que era chefiado pelo Delegado Geral de Polícia, Felinto Müller. 

Preso, por determinação do Governo Federal, era na ocasião, Secretário do Interior e Assuntos de Justiça do Espírito Santo, Ciro Vieira Cunha; Delegado de Ordem Política e Social, Amúlio Finamori. Meu pai teve suas oficinas gráficas lacradas, ocasião em que eu, minha irmã mais velha, Daoulah e meu irmão, também mais velho que eu, Gontran, fomos enviados para o Rio de Janeiro, para a casa de uma tia, irmã da minha mãe, Francisca Santos Moraes – Tia Corintha, que mantinha uma pensão na rua 1º de março, 116 – Centro do Rio, perto do Arsenal da Marinha e do Colégio São Bento, tradicional educandário do Rio de Janeiro, - na época, era seu dirigente o Monsenhor Aquiles Mello, que muito me ajudou na vida.

Libertado, seis meses depois, meu pai vendeu tudo que tinha em São Mateus e voltou às origens, foi para o Rio de Janeiro bater nas portas do velho Edmundo Bitencourt, no Correio da Manhã, onde ficou até 1948, quando o então dono de A GAZETA, Eliosipo Cunha, o “rei da madeira”, filho do Barão de Aimorés, que detinha toda a área de madeira do quilômetro 41, em São Mateus, convidou meu pai para ser diretor do jornal, onde permaneceu até 1963, quando se aposentou. Eliosipo Cunha vendeu o Jornal A GAZETA, depois, em 1949, para Alfredo Alcuri, que representava o grupo do governador Carlos Lindenberg, que detém aquele patrimônio até hoje.

No Rio de Janeiro, um ano depois, fui ser boy, no escritório de um advogado, Fabrício Ponce de Leon, uma figura extraordinária, que me abrigou, me tratou como filho, com sua esposa, D. Ângela.
Um encontro acidental, em Copacabana, com Dona Alda Magalhães Santos Neves, esposa do Governador Jones dos Santos Neves, fez com que eu viesse para Vitória, quando me disse Dr. Jones, que era Governador, me arranjaria um emprego, que ele gostava muito de minha mãe. Eram parentes.

Em dezembro de 1951 voltei para Vitória e, em março, ingressava em A GAZETA como revisor, passando a redator em setembro, com um formidável empurrão de Eugênio Pacheco de Queiroz, Diretor-presidente de A GAZETA, contrariando a vontade de meu pai, que não queria filho seu jornalista. Estou em A GAZETA até hoje. Meu trabalho em A GAZETA era noturno, começando às 19 horas até acabar o serviço, lá pelas duas horas da madrugada.

Em agosto de 1959, recebi um convite do empresário Américo Buaiz para trabalhar na Federação das Indústrias, para organizar o sistema, fazer sindicatos, que só dispunha de 5, o número mínimo, e que o presidente da Federação do Comércio, José Saade, também precisava dos meus serviços.

Na Findes, permaneci até 1985, onde exercia a função de Assessor da presidência. Saí porque quis, devido a meus afazeres à frente da Administração Regional do SESC, onde ingressei em setembro de 1973 como Diretor Regional, mas onde vinha exercendo, no Sistema Fecomércio, a função de Secretário Executivo, desde agosto de 1959.

Ser jornalista – pelo menos no meu tempo – era uma cachaça, uma atração pelo cheiro de tinta de impressão, misturada com o de antimônio, utilizado pelas máquinas de linotipo.

Hoje, com a introdução da eletrônica, onde a composição de jornais passou a ser através dos computadores – sistema frio – o jornalista perdeu um pouco do seu brilho de aventura, daquela redação que cozinhava a feitura dos jornais pela madrugada. Hoje, mando meus inscritos para  A GAZETA, on line, e recebo  meu salário pelo Banco. Acabaram aqueles vales quinzenais, como adiantamento de salário, sempre atrasado.

Como administrador do SESC, nesses 38 anos, o que tenho feito é construir a terceira estrutura de turismo social do Brasil. O SESC do Espírito Santo tem 1.100 empregados, três vezes mais do que o SESC de Minas Gerais, considerado, depois de São Paulo, o 2º do país. Construí os dois maiores centros de turismo do país, para a classe comerciaria, em Guarapari e Praia Formosa, cada qual com mais de 600 apartamentos. Ainda não fixei uma data para parar. Não sei quando esse pessoal para quem trabalho vai enjoar da minha cara. Quando tiver que parar, vou continuar numa propriedade agrícola que tenho em Guarapari, há 40 anos. O tempo dirá.

Vocês podem avaliar o que era morar em São Mateus, na década de 40, onde só existia um Grupo Escolar, que ensinava até a 5ª série do primário e, de uma hora para outra o jovem ter que sair da cidade onde nasceu, com apenas duas ruas e um porto em extinção, pelo declínio da madeira que era por ali exportada, e ir morar no Rio de Janeiro.

Hoje, a sociedade brasileira tem modernos centros de ensino, com auxílio da alta tecnologia, no campo da informática. No meu tempo, quem quisesse cursar escolas melhores, precisava ter dinheiro, ser filho de pai rico.

Um dos períodos mais fascinantes da minha vida foi o tempo que estudei no Grupo Escolar. Lembranças da diretora da minha escola, Irene Matos de Azevedo, da minha professora, Aldemária Magalhães, e a figura da Dona Cotinha, professora de Matemática, que não dava trégua a quem não queria estudar, com sua régua de galalite, de um metro de comprimento.

Hoje, existem métodos modernos de apurar as vocações profissionais, mas o melhor mesmo é deixar que a mente se abra para o que seja melhor para o jovem. Nada melhor do que o tempo.

Não existe profissão ruim. O que existe é profissional ruim, que não tem amor pelo que faz. Cabe ao homem, ao trabalhador, ao empregado, ao servidor público, construir sua reputação, sua credibilidade, honra e palavra empenhada.

Um conselho – nunca deixem de estudar, nada mais precioso do que um jovem consciente do diploma que conquistou e ser feliz. Isso é que todos os pais desejam para os filhos.

Obrigado pela oportunidade.

   










JOKSOELIA DE SOUZA · 18/08/2011 15h18
Enquanto digitava o texto, fiquei maravilhada com a aula de profissionalismo, amor e determinação pelo que faz. Queria chegar logo no próximo parágrafo e aprender um pouquinho mais. Que exemplo de vida, que aula de história! Agora entendo quando os presentes na palestra desceram em estado de graça. Parabéns Sr. Guttman pelo legado que deixará pra sua família e também pra todos aqueles que um dia conhecerão a sua bela história. Suellen



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