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Descrição do trabalho Vidas Secas
19/02/1998 · por Paulo de Tarso Rezende Ayub

Como professor de Língua Portuguesa, nutro a percepção de que todo projeto de leitura vinculado ao texto verbal deva envolver necessariamente as perspectivas lingüística (privilegiando-se os aspectos ideológico e discursivo da língua), gramatical (a gramática concebida num sentido mais amplo, priorizando-se a abordagem textual e a análise de recursos linguísticos) e, quando for o caso, literária. Nesse particular, quer me parecer que a internalização de conceitos teóricos atrelados à Literatura se torne mais palpável quando conjugada com a observação aprofundada do texto escrito em si mesmo, em suas múltiplas facetas e em interação com outras manifestações de arte.



Foi pautando-me nessas premissas que propus a meus alunos de 2º ano do 2º grau uma experiência de leitura contemplando a obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, um marco da Literatura Brasileira e Universal. Referida escolha, além de pretender valorizar a produção nacional, teve como fundamento enaltecer a presença do livro na sala de aula, a fim de resgatar a leitura interiorizada e coletiva do texto escrito, que o apelo visual extremado vem comprometendo. Previamente, os alunos haviam sido estimulados a ler a obra com esmero, assinalando passagens significativas, intervindo no processo de construção de sentidos e buscando perceber a articulação textual, o uso de recursos de argumentação e os efeitos propiciados por metáforas, pressupostos e entrelinhas sugeridos pelo autor.



O projeto teve início com a análise interativa de uma fotografia extraída de jornal local, em que se mostrava uma mãe (de rosto oculto, como que a denunciar a perda da identidade provocada pela miséria) amamentando um bebê em meio a um "lixão" urbano, amparada por uma menina de olhar transparente e expressão forte (uma representação da luta pela sobrevivência). Os alunos foram levados a descortinar o jogo de imagens dessa manifestação artística e os não-ditos que elas podem traduzir, veiculando-se a leitura e a metaforização também à linguagem não verbal (começou-se, então, a discutir os múltiplos sentidos em torno da expressão "vidas secas", abarcando desde a miséria social e física até as misérias interiores de cada um). A partir desse estímulo, passaremos a esmiuçar vários fragmentos do livro indicado, procurando despreender a riqueza literária, lingüística e ideológica que o caracteriza; com isso, a experiência individual da leitura passou a ser partilhada e a enriquecer-se pela sensibilidade e visão crítica do outro.



Com o envolvimento gerado por discussões grupais e leituras coletivas, conseguiu-se ampliar as apreciações do professor e dos educandos em torno de temáticas relevantes, tudo com aparato na estruturação e tessitura do texto selecionado. Eis as principais abordagens levadas a efeito: a vinculação entre a "aridez" lingüística do texto de Graciliano Ramos e a "secura" interior de seus personagens; a universalidade da obra-de-arte, quebrando-se o mito da regionalização das obras de autores nordestinos (a compreensão psicológica e filosófica do homem sertanejo pode equipará-lo ao homem universal); a plurissignificação do texto literário, sustentada nas diversas metaforizações ao longo da obra; a relatividade que deve marcar a tipologia textual e a classificação literária , sob pena de se comprometer a amplitudes das obras; a compreensão da prosa poética e a percepção da poesia como um fenômeno plural, não necessariamente vinculado ao texto escrito; a identificação de figuras de linguagem e outras imagens (semiótica) no curso da própria narrativa; as diferenciações entre os tipos de discurso, a partir da postura do narrador e dos personagens; as múltiplas funções da Literatura e os pontos de contato que mantém com outros códigos (cinema, fotografia, música, pintura); a obra-de-arte e suas relações ou desvinculações com o contexto; os componentes da Literatura Fantástica e da Literatura comprometida com a realidade; as divisas entre real e imaginário no interior dos personagens e do próprio homem (intra ou extra-manifestação artística). O ápice das discussões trouxe à tona os fenômenos da "humanização" do bicho e da "animalização" do homem - tão bem retratados pelo autor - compreendendo-se reflexões acerca de valores sociais, filosóficos, humanos e éticos por vezes deteriorados na contemporaneidade.



Um dos momentos mais emocionantes constituiu-se na análise interativa do capítulo "Baleia" (uma metáfora do vínculo entre sertão e mar - símbolos de mistério e infinitude -, que Antônio Conselheiro, personagem lendário da Guerra de Canudos, já deixava transparecer), ocasião em que os alunos demonstraram compreensão ampla dos aspectos abordados, permitindo-se desvendar as potencialidades lingüísticas e literárias que o texto nos reserva, quando estudado a fundo e coletivamente. Revelou-se igualmente marcante a leitura comentada de fragmentos do Auto de Natal pernambucano Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, como referencial para se discutir a relevância da intertextualidade na análise de textos de qualquer natureza e a "severinização" (termo proposto por uma aluna) da humanidade, resultante da perda da individualidade do homem - seja dividido em castas desagregadoras, massificado por sistemas de Poder ou "insulado" em si mesmo.



Na etapa final, os alunos apresentaram trabalhos diversificados (produção de textos analíticos em torno de passagens metafóricas da obra ou explanações orais, tendo por eixo a concatenação da Literatura com outras linguagens), os quais comprovaram o êxito do projeto, merecendo uma avaliação positiva dos demais colegas, do professor e da instituição. Dentre as performances mais marcantes, cumpre ressaltar a ousadia de um grupo que constituiu uma dramatização em torno de Vidas Secas, elaborando uma espécie de monólogo para cada um dos personagens, em que se soube conjugar a percepção crítica em torno do universo interior desses seres e a síntese de conteúdos teóricos e ideológicos contemplados no decorrer da atividade. Outro grupo fez uma apreciação instigante de fotografias extraídas do livro Terra, de Sebastião Salgado, e de pinturas de Cândido Portinari, associando-as a fragmentos do livro e a letras de músicas regionais que denunciam a problemática social e humana presente no sertão e em outras paragens. O fascínio do projeto decorreu da pluralidade de linguagens e estilos que permeou a condução de suas diversas fases, bem assim da transposição do regionalismo do sertão para a universalidade dos cosmos.



Embora se tenha estendido por seis aulas de quarenta e cinco minutos cada e três horas seguidas de uma manhã de sábado (espaço reservado para apresentação de trabalhos), a prática de leitura deixou uma sensação inacabada dentro de cada um de nós, professor e alunos que a conduzimos: é como se clamasse para que as reflexões não se encontrassem ali e dessem vazão a uma acuidade crítica permanente. Os frutos colhidos configuram-se bem palpáveis: aprendizagem coletiva, aberta, sistemática; reflexões interiores para mudança de postura e pensamento de valores; e, principalmente, a sensação de que a sala de aula e a experiência de práticas múltiplas de leitura (muito além que a decodificação de palavras, imagens e símbolos) podem transformar concepções individuais e coletivas, a partir da intensificação do senso crítico dos leitores e de sua sensibilização para a vida do homem e do próprio estar no mundo, já que os desafios humanos e as batalhas frente a eles assumem conotações atemporais e ageográficas.

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